__ Matei-a sem piedade.
Foi com um tiro certeiro na cabeça, pois ela desgraçara minha vida quando
escrevera uma maquiavélica história sobre meu filho amado. Usei da força bruta
diante daquela criaturinha tão frágil, tão meiga, tão doce e tão delicada. Isso
tudo esteticamente não mostrava seu caráter nem o teor forte de sua pena.
Olhava-me no espelho e via aquela
figura angelical refletida parecendo-me com seu verdadeiro ato de criação e
minhas entranhas desejava parir para que ela desse vida a mim e ao filho amado,
dois personagens que se entrecruzam e entrelaçam entre si.
Toda substância que se mistura a uma
polpa química de oxigênio, água, sangue e ossos combinavam na construção desses
dois personagens que almejam explodir e implodir sentimentos mascarados e
sub-reptícios oriundos do ato de escrever.
Nunca vi tanta necessidade de nascer, de
viver e de brotar emoções e anseios nessa amalgamada essência dissonante que
terminara em assassinato – assim pensara Ana M. P. na construção de seus
pensamentos.
Mesmo sabendo que iria morrer Ana M. P.
continuava seus escritos e a explorar o que sabia de melhor para se defender,
mesmo que seja do seu ato criador sobre uma voz masculina tão intrigante.
Ele era policial da informação. Robusto,
meio barrigudo, com uma barba suave que tinha que fazer semanalmente. Mas tinha
que dar vida a essa personagem porque sairá não somente de sua mente mais
também de seus tímpanos. No início ela tentava defenestrá-lo, mas tudo era em
vão. A voz desse policial era tão forte, tão intensa, tão grave, tão viva, que
ela preferira a tinta e o papel para expulsar o demônio que se encontrava a
espreita.
Não obstante, o exorcismo nada
funcionava e ela percebera que escrever era a forma de resistir e construir uma
história profunda sobre um elo entre policial e filho amado.
Não se podia mais hesitar, pois o mundo
real invadira a ficção ou a ficção invadira seu mundo real. Tudo se
entrelaçavam num emaranhados de palavras para dar existência a esses dois
personagens sem rostos, sem conhecimentos profundos, sem idades, sem expressões
e sem pudor. Ana M. P. sabia que não haveria sequer um pouco de lisura na
construção dessa história, já que sabia que seus personagens sem faces e sem
muitas descrições não iriam tão longe quando ela fosse condenada pelos seus
atos de escrever.
O choro intenso daquele pai que
pronunciara o nome do filho amado soava em seus ouvidos como um acorde
desafinado, que se mesclava a uma ira, a uma raiva, a um ódio e uma fúria
imensa que solava uma canção em forma de réquiem e vingança diante de uma
escritora fracassada que conjurara seu filho amado a uma futura prisão
existencial e ao limbo impessoal dos prazeres terrenos.
Por mais que Ana M. P. tivesse pena
desse pai, que jogara o próprio filho à cova dos leões, ela fora instigada a
descrever esse ato brutal com o alento de seu trabalho. Batia um remorso nela
que contagiava o papel, mesmo assim ela tinha que se libertar dessa cena a fim
de que seus poucos leitores pudessem penetrar em mais um enredo contaminado por
vilanias e bem-feitores. Embora nessa história os protagonistas sejam o
policial e seu filho amado, ela precisava dar vida e uma direção para ambos.
Nomes? Esses dois personagens não
possuem. Trata-se de dois espectros que a assombram com muito furor e
expeli-los seria o melhor remédio para a transformação de um tecido ficcional
que se embaralhava com a realidade dela. Ana M. P. não se podia mais esconder
nem deixar que esses personagens a enlouquecesse terrivelmente sem compostura
nenhuma.
Ana M. P. sabia que iria morrer por um
dos seus personagens, no entanto de forma determinada e cuidadosa fazia o
registro de seus pensamentos e dessa voz poderosa que saia do seu ventre
materno.
__ Esta desgraçada
escreveu sobre meu filho amado! Deu-nos vida em abundância.
Assim começara o duelo entre escritor e
personagens. A metalinguagem esvaia na performance de Ana M. P. enquanto ela
escolhia os melhores vocábulos para preencher a lacuna que se tornaria uma
excelente discussão entre seus poucos leitores, seus personagens confabulavam
contra ela de forma escusa.
Após engendrar vida aos protagonistas de
sua história, Ana M. P. descobrira que seu universo tinha sido invadido e que
realidade e ficção se confundiam, pouco a pouco, com as ameaças do policial,
visto que ela não queria ter vida, ela não desejava uma morte social, não
ansiava expor seu filho amado, mas mesmo assim a escritora resolveu desvendar
esse mistério e ir a fundo a seus estudos metalinguísticos, pois seria um conto
em que um personagem mataria seu próprio autor.
Depois de narrar as angústias do
policial que entregara o filho à morte, Ana M. P. começou a andar pelas ruas
com certo toque de receio, parecia meio afugentada por contar algo que tinha
que ser guardado a sete chaves, mas que descobrira sozinha quando quis criar um
universo e um cosmo que se aproximasse do real e da escrita.
O policial num desespero inenarrável
começou a afirmar que amava muito seu filho, mas nada adiantara porque ele se
tornará um personagem de ficção versus realidade. E tudo parecia uma afronta e
aquele pai desgraçado fora terminar seu ato tão sórdido durante uma tarde
ensolarada de inverno. Era um frio causticante. Ana M. P. alimentava os pombos
da praça enquanto fora abordada por um brutamonte que lhe começara a surrar
desenfreadamente. Muitos assistiam sem reação aquela barbárie, mesmo assim
permitiram que a escritora fosse surrada por um dos seus personagens do poder
público. Ele saíra diretamente da folha e ganhara vida com a finalidade de
matar aquele que a criou. Era uma luta desigual entre uma mulher fraca com um
homem armado.
O sangue escorria no corpo da vítima,
que fora acusada por escrever histórias bastante reais, porém poucos
acreditavam nela. Tudo acontecera de forma tão rápida e tão estúpida que Ana M.
P. não teve tempo de se defender nem de gritar. Foi tudo a queima roupa e à
revelia.
A bala adentrou o universo da palavra e
da vida. Tudo compelia ao policial o uso da força para se autodestruir, pois à
medida que o autor se desfaz seu personagem morre com ele para que o campo
social dissonante apodreça na escrita.
E tudo se desfez: autor e personagens.
Ambos não tiveram escolhas para viver livres nem regozijar por momentos de
afetos, pois essa história não podia ter final feliz. O filho amado jamais
perdoou seu pai e esse morreu de remorso e de dor pela eternidade conjurada
numa espécie de metáfora e num lugar onde se lançam coisas de que não se faz
caso. O vínculo que ambos tinham fora arranhado e quebrado para sempre, uma vez
que a confiança entre eles feriu-se, acabou-se, tirou para si com violência,
arrebatou-se por completo o amor entre os dois e virou pó após o massacre da
criação.